Combinando agilidade e experimentação para explorar a criatividade das bordas

Ferramentas e práticas que a Amazon, o Google e mais gigantes digitais refinaram para multiplicar times inovadores

Luiz Gustavo Amorim
8 min readNov 8, 2021

Carros e apartamentos são produzidos e utilizados em etapas separadas. E os momentos de manutenção geralmente são desagradáveis em ambos os casos.

Não sei o quanto isso lhe surpreende, mas reescrever recorrentemente um software durante sua utilização não é apenas comum, mas, necessário. A acomodação de novas regras de negócio só se sustenta em códigos constantemente modificados pelo time de programação.

O caráter de manutenção constante dos softwares exigiu ciclos contínuos de feedback entre clientes e times, fluindo sobre processos mais horizontais do que os oferecidos pelas teorias de administração herdada das fábricas.

A lentidão dos projetos complexos dos anos 90 (ex.: C3) motivou Kent Beck, Martin Fowler e mais especialistas a explorarem novas práticas e valores de gestão, que foram agrupados no manifesto ágil em fevereiro de 2001.

O manifesto deu visibilidade a manuais de programação (ex.: refatoração e teste) e metodologias de trabalho em equipe (ex.: Scrum), que dinamizaram o lançamento de novos serviços e modelos de negócio no Vale do Silício pós bolha da internet.

Aumento de produtividade sempre é bem-vindo, mas nesse caso foi especialmente útil pois as startups (financiadas pelo capital de risco) precisavam reduzir o tempo de resposta do mercado para suas inovações.

A IMVU era uma tentativa do Eric Ries, com investimento do Steve Blank, de fazer um metaverso em 2008, muito antes que o Pokemon Go e o Facebook. Novos avatars e interatividades eram constantemente testados, para mensurar a afinidade do público.

A empresa não deu certo, mas da frutífera relação do Steve Blank com Eric Ries (que foi aluno do Steve em Berkley), nasceram o livro e o movimento de Lean Startup, que esquematizaram uma aplicação de método científico (observação, pesquisas, hipóteses, experimento, análise e conclusão) para validação de novos modelos de negócio.

A mentalidade ágil de desenvolvimento de software e a experimentação do Lean Startup abastecem o processo decisório (de times e gestares) com feedbacks continuamente. E como as mudanças via internet impactam os clientes imediatamente, a dinâmica produzir, lançar e colher feedbacks é muito rápida nas empresas digitais.

Os diálogos constantes promovidos pelo ágil e pela experimentação aproximaram os aprendizados da gestão e da execução. Mark Zuckerberg programando junto com o time no Facebook, e o call center da Zappos no meio do escritório são boas ilustrações dessas culturas menos hierárquicas, que conseguiram explorar mais a criatividade dos times, para crescer rapidamente nos mercado de mídia e varejo.

De 2000 pra cá, vimos nossas rotinas se entrelaçando cada vez mais com essas inovações digitais. Mas a forma como essas empresas se organizaram para trabalhar demorou a chamar a atenção.

As plataformas de software começam a engolir o mundo

Muitos orçamentos de tecnologia só ganharam força com a pandemia, mas um grande chamado para investir em software aconteceu há 10 anos, na publicação do Marc Andreessen: “Why software is eating the world”.

O artigo explica que a capacidade de escalar sem adição de ativos físicos (lojas, fábricas etc.) garantia margens confortáveis para as plataformas da Amazon, Square e Facebook (Meta).

Andreessen ainda profetizou a ascensão de uma gigante de carros elétricos, que se tornaria maior que qualquer montadora tradicional. No mês passado, a Tesla, fundada em 2003, superou a soma do valor de mercado de todas as fabricantes tradicionais.

Fonte: James Eagle https://www.youtube.com/shorts/RiBoyseNnno

A AWS é um bom exemplo de plataforma global de software

Quando o artigo foi publicado em 2011, a valorização da Amazon já refletia sua retomada vitoriosa pós crise do subprime. E o Jeff Bezos já tinha aberto sua carta aos acionistas, meses antes, comparando as reuniões da sua empresa a uma aula de ciência da computação.

De lá pra cá, as previsões do Marc continuam envelhecendo muito bem. Em 2018, a Amazon rompeu a barreira de 1 trilhão de dólares em valor de mercado, e hoje a empresa já vale USD 1,68 trilhões.

Valorização impressionante da Amazon após a crise do subprime. Fonte: Yahoo Finance

Você pode se perguntar: “entregar produtos em casa vale isso tudo?” Não exatamente. Em 2006, o lançamento da AWS (Amazon Web Services) pavimentou a estrada para a Amazon se transformar na infraestrutura de startups, centros de pesquisa, estudantes, e quem mais (no mundo) precise de armazenamento e processamento de dados.

Jeff Bezos conseguiu fazer pelas startups do século XXI o que a rede elétrica fez pelo capitalismo do século XX. Assim como a rede elétrica eliminou a necessidade de uma indústria criar a própria usina, a AWS eliminou a necessidade de empresas comprarem seus próprios servidores.

A Microsoft só lançou o Azure em 2010. E o Google Cloud só chegou ao mercado em 2012, quando o então CEO, Eric Schmidt, assimilou o golpe: “Temos que lhes dar o crédito. Os vendedores de livros aprenderam a programar, descobriram análise de dados, e lançaram algo significante”. Dez anos depois, a Amazon lidera o mercado de cloud com 32% de participação, e uma confortável margem operacional de 29%.

Listada no seleto grupo de corporações trilionárias, a Amazon alocou o maior CAPEX dos EUA em 2020: USD 54 bilhões. Nenhuma outra empresa, de nenhuma das indústrias da maior economia do mundo, teve um investimento equivalente (ver gráfico abaixo).

Maiores CAPEX dos EUA em 2020

A transformação da Amazon para criar a AWS

Jeff Bezos é engenheiro elétrico e cientista da computação de formação, e escolheu algoritmos como tema de pesquisa na graduação. Em 1990, Bezos foi indicado pelo seu orientador para a gestora de fundos quantitativos do, também professor de ciência da computação, David E. Shaw. Programando algoritmos e dormindo embaixo da mesa, Jeff Bezos se tornou VP em 1992.

Em 1994, Bezos fundava a Amazon com o despojamento “geekie” de um programador, a perspicácia financeira de um banqueiro, mas também o imediatismo de um Sam Walton, CEO do Wall-Mart. A empresa cresceu meteoricamente, mas passou os primeiros 6 anos desenvolvendo softwares às pressas, que escalavam aquém do necessário para suportar os picos de tráfego de final de ano.

Em 2003, a estrutura gerencial era tóxica demais para talentos como Udi Manber (que migrou para o Google), e os sistemas (que tem uma quedinha por refletir suas estruturas) não atendiam times que quisessem testar ideias de personalização, precificação, etc. Rick Dalzell, CIO, ouviu do próprio Bezos que a tecnologia estava “sufocando a criatividade da empresa”.

A combinação de um modelo de negócios varejista de margens apertadas, com a falta de sofisticação tecnológica fez com que as ações, já rastejantes, desvalorizassem 12% em 2005, ano do décimo aniversário. As ações do Google, com apenas um ano de IPO, valiam 4 vezes mais que as da Amazon. Bezos precisava rever como construía software reter talentos, e competir pelas confortáveis margens das plataformas digitais.

De 2003 a 2006, a Amazon investiu para alocar equipes em diferentes iniciativas de serviços (busca, publicidade, navegação), e nos legados de tecnologia que sufocavam a inovação nos negócios de livros, brinquedos e música.

Nenhum serviço digital novo deu certo, mas Werner, Vogel, Charlie Bell, Chris Brown, Chris Pinkham (todos programadores) ganharam os investimentos necessários para desenvolver o S3 e EC2, que entregaram, ao mesmo tempo, liberdade para os times testarem novas funcionalidades em produção (com clientes reais), e uma gestão sob demanda do poder computacional dos servidores (que ficavam ociosos fora dos picos de vendas).

Em um mundo engolido por software, conforme descreveu Andreessen cinco anos depois, todas as grandes empresas enfrentariam o mesmo problema de acesso a poder computacional. O banqueiro-desenvolvedor Jeff Bezos enfim tinha em mãos um modelo de negócio de plataforma digital, com escala global, e taxas de retorno confortáveis… como o que o Google criou na indústria de mídia.

No ano do seu lançamento, AWS já atendia 240 mil desenvolvedores. Sob a liderança de Andy Jessy, os engenheiros seguiram evoluindo sua arquitetura, lançando mais serviços continuamente, e crescendo em base de clientes. Em 2020, a AWS entregou 59% do lucro operacional da Amazon precisando gerar apenas 12% do faturamento.

Amazon aumenta a velocidade de lançamento de novos serviços ano a ano. Fonte: Carta Anual de Acionistas https://www.aboutamazon.com/

A consolidação de um modelo científico de promover crescimento

Junto com o sucesso financeiro, se consolidou uma cultura capaz de orquestrar investimentos nas apostas disruptivas da gestão (Prime, Kindle, Fire, etc), e nas melhorias incrementais de preços, recomendações e UX lideradas pelos times de execução.

Três práticas se combinam para organizar a inovação nessas empresas.

Primeiro é criar uma relações de causa e efeito compreensíveis entre ações locais dos times em suas especialidades e alavancas estratégicas priorizadas pela gestão.

Segundo é adotar um método científico. Formulando uma boa hipótese, com evidências que sustentem uma relação de causa e efeito, o time pode testar a ideia em uma amostra confiável de clientes, e validar ou refutar sua ideia inicial, sem grandes aprovações gerenciais.

Terceiro é uma abordagem mais humilde da gestão, que precisam orientar os times na formulação de hipóteses, e na execução de experimentos e nas análises.

Para nutrir a criatividade dos times continuamente, a cultura gerencial pede mais boas perguntas do que boas ordens. (ex: o que você aprendeu? Como você prova que aprendeu isso? O que quer aprender agora? Como posso ajudar?). E a infraestrutura precisa dar segurança para que qualquer time coloque suas ideias nas mãos de clientes reais sem por em risco a operação da empresa.

O Booking é um exemplo de empresa que desenvolveu uma liderança mais humilde, que não se importa de ter suas próprias ideias refutadas por um teste controlado em uma amostra restrita de clientes. A líder mundial em viagens também desenvolveu uma plataforma própria de experimentação, que confere a todos os times liberdade de testar novas ideias, em produção, em menos de 24 horas.

Ultrapassando a marca de 20.000 experimentos por ano, todos alinhados a um objetivo estratégico bem mensurado, e, “big techs” como Google, Amazon e Booking horizontalizaram e agilizaram o eixo de decisão. Os desempenhos agregado dessas “máquinas de experimentação” fazem as demais empresas do S&P 500 parecerem renda fixa.

Análise do retorno sobre o valor das empresas em base 100. Autor: James Zeitler para o Harvard Business School´s Baker Research Service — Fonte de dados: Bloomberg 2019

Experimentação ainda é um papo menos frequente nas agendas de transformação digital, mas semanalmente vemos CEOs abrindo planos de desmonte da gestão hierárquica, revisão códigos legados e aumento de investimento em dados, que são pré-requisitos para essa conversa.

O próximo post explora as origens dos mecanismos de agilidade e experimentação, assim como ferramentas mais simples baratas, que viabilizam a adoção dessa nova gestão em negócios de diferentes tipos e tamanhos.

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